De um lado do quarteirão, quem olhar pela porta terá a impressão de que lá dentro está uma escola de dança, com professores, alunos, secretárias, salas com barras, decoração que evoca sapatilhas. Do outro lado, a impressão é de que vemos um teatro bilheteria, cartazes de eventos, palco, platéia. No interior, além das pessoas que parecem professores e alunos, temos também algo igualzinho a uma companhia de dança - ou, para usar os jargões da moda, um coletivo de artistas da dança. Não se iludam com nada disso. É tudo fachada. O tal do Uai Q Dança, na verdade, é uma célula terrorista onde são planejados e executados, quase cotidianamente, atentados culturais.
Como qualquer terrorismo, o terrorismo cultural é perigoso. Seus atentados não destroem edifícios nem pessoas. Mas arrasam com ideias pré-concebidas, formas consagradas, políticas estabelecidas. Tá bom, dentro do Uai Q Dança há aulas, espetáculos, ensaios, e outras coisas que se esperaria de escolas de dança. Ou de teatros. Ou de coletivos. Novamente, é bom olhar com mais atenção o que se vê, olhar em profundidade. E você vai descobrir que ali se ensina crianças e adolescentes a pensar por conta própria - crime que, em boa parte das sociedades contemporâneas, pode ser punido com a exclusão. Ali são mostrados espetáculos que fogem completamente às linguagens que são vistas nos cinemas dos shoppings ou nas televisões - e isso significa que os espectadores estão sendo treinados a não conseguir mais se comunicar com o restante da humanidade, crime frequentemente punido com o ostracismo. Ali são criadas obras que tentam entender o ser humano, e não os mitos construídos sobre ele - e isso, em muitos lugares, equivale a uma pena de desilusão.
Cuidado com o Uai Q Dança, senhores. Quem circula lá dentro, alunos, professores, pais, amigos, comete as duas maiores atrocidades que o homem moderno pode imaginar: eles querem ser felizes, e fazer outras pessoas felizes. E, pior de tudo, nem ao menos se conformam com a ideia de felicidade que a publicidade propõe - invejar, comprar, ter. Exigem outra completamente distinta - colaborar, construir, ser. Em resumo, querem acabar com o mundo como o concebemos, e construir outro muito, muito melhor. Uma ambição que, em certos lugares e certos tempos, vem merecendo pena de morte.
Marcello Castilho Avellar, crítico de artes e terrorista cultural
(in memoriam)